Por Roberto Amaral
A característica certamente
mais exemplar de nossa história é a conciliação. De cúpula sempre (ou seja,
conciliação em nome da preservação dos interesses da classe dominante),
impedindo a revolução (como tal entenda-se também a simples ameaça de emergência
das massas).
E retardando as reformas das mais simples às mais essenciais – todas, como meras reformas, pleiteadas conforme as regras do regime que não visavam a alterar. Em todos os momentos graves, a ruptura – ainda quando uma exigência histórica – cedeu espaço à concordata pois o essencial foi sempre a conservação dos donos do poder no poder. Da Colônia ao Império, do Império à República, e até aqui.
Mas a opção pela conciliação não impediu que nossa história fosse, desde o Primeiro Reinado. E juncada de irrupções militares, às vezes quase sós motins, como aqueles que precederam (preparando-a) a Independência e a sucederam (consolidando-a), até a resignação do Imperador, de malas prontas para o cerco do Porto e a revolução liberal que, depondo d. Miguel, faria D. Maria, a rainha brasileira dos portugueses, subir ao trono.
E retardando as reformas das mais simples às mais essenciais – todas, como meras reformas, pleiteadas conforme as regras do regime que não visavam a alterar.
No Segundo Império a
preeminência militar senta praça após a infeliz guerra ao Paraguai, quando
nossas forças de terra e mar alcançam algum grau de organização e
profissionalismo/profissionalização e, animado pelas penosas vitórias nos
campos de batalha, decidem exercer presença na política imperial.
Era propício o momento, com as
seguidas crises dos seguidos gabinetes, a campanha abolicionista e republicana
e, no plano ideológico, o positivismo grassando na caserna e conquistando a
jovem oficialidade. Assim, na formação histórica brasileira, temos duas linhas
convergentes sob o fundo autoritário: a conciliação e a insurgência militar.
Mas na altura do II Reinado
nada que sugerisse, nem de leve, o que seria a presença desestabilizadora dos
militares na República. Se o marco inaugural foi a ‘parada militar’ do 15 de
novembro, que derrubou o Império e viu a República consolidar-se com o golpe de
Floriano, o ciclo se fecha com a conjuração do golpe de 1º de abril de 1964,
que se afirmaria como uma ditadura de 20 anos.
Entre um polo e outro, de intentonas e
sublevações seria rico o primeiro terço do século: o levante do Forte de
Copacabana (1922), a insurgência paulista de Miguel Costa (1924) e a coluna
Prestes (1924-1927) caracterizaram a República Velha, que morreria em 1930 com
a irrupção civil-militar que passaria à história como Revolução de 30.
E hegemonizada pelos tenentes de 22 e 24, que comandariam as forças militares e
permaneceriam no proscênio da política até a ditadura de 1964: Eduardo Gomes,
Juarez Távora, Cordeiro de Farias, Ernesto Geisel... A revolução de 1930 – que empossa Getúlio Vargas –, transforma-se na ditadura do Estado Novo em 1937, após sufocar um putsch integralista (1932) e um levante de militares comunistas comandados por Luís Carlos Prestes (1935).
Os mesmos generais responsáveis pelo golpe de 1937 (à
frente de todos os generais Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra) agora se
levantam contra Vargas, e abrem caminho (1945) para a restauração democrática. Inicia-se com um general, o ex-ministro da Guerra da ditadura, o general Dutra, o ciclo de presidentes eleitos pelo voto popular e de regimes democráticos que os mesmos militares sufocariam 18 anos passados.
Após uma sequência de golpes militares e
tentativas de golpe – deposição e renúncia de Vargas (1954); tentativa de
impedimento da posse de JK-Jango e contragolpe militar de Lott-Denis (1955),
tentativa de impedir a posse de Jango (crise da renúncia de Jânio Quadros).
E o golpe parlamentarista (1961) – a estratégia da preeminência militar abandona as
intentonas e as irrupções, para exercer um efetivo superpoder, pairando acima
dos três poderes constitucionais, regendo a República sem depender da soberania
popular ou submeter-se a qualquer regramento.
Foi o largo período dos pronunciamentos militares
manifestando-se sobre a vida civil e interferindo na política. Naquele então o
Clube Militar era uma instância suprema, na qual os destinos do País eram
decididos. Naquele então, os militares se pronunciavam sobre tudo, até sobre os
índices do salário-mínimo, e podiam exigir e obter a demissão do ministro do
Trabalho que ousava favorecer os interesses dos trabalhadores.
E um major da aeronáutica
(Rubens Vaz), da ativa, o que enseja a brigadeiros e coronéis da FAB instalarem
um IPM – à revelia da Polícia Civil – e, sob o pretexto das investigações desse
crime, instaurarem o que ficou batizado como a ‘República do Galeão’, em
homenagem ao aeroporto carioca em cujas instalações militares os coronéis
operavam, à margem da ordem legal.
E assim sem leis a observar, desconhecendo
limites a obedecer, o comandante do inquérito, ou presidente dessa República
auto-constituída dentro da República constitucional, tornou-se um reizinho
absoluto, porque tudo podia, todas as diligências, todas as prisões, senhor que
era de todas as jurisdições. Porque tinha o respaldo de seus superiores –
fortalecidos em face da fragilidade crescente do governo e de seu chefe – e o
aplauso da grande imprensa, que o incentivava.
Tudo queria, tudo podia e tudo alcançava porque
seu objetivo, o objetivo do IPM e da ‘República’, não era apurar a morte do
major guarda-costas, mas atingir, como afinal atingiria mortalmente, a honra do
presidente Getúlio Vargas, alvo da mais injuriosa, da mais violenta campanha de
imprensa jamais movida no Brasil contra um chefe de Estado.
A infâmia, a injúria e a difamação não conheciam
limites, invadindo mesmo sua privacidade e a intimidade de sua família. Vargas,
o homem, o presidente, o líder de massas era o objetivo da imprensa
unanimemente hostil, a serviço da direita derrotada com sua eleição em 1950.
Destruí-lo era o desejo de uma oposição
desvairada, era o projeto de militares sublevados e de setores ponderáveis da
classe-média, conquistados para a razzia antivarguista pelas denúncias, jamais
comprovadas, de um ‘mar de lama’ que correria pelos inexistentes porões do
discreto e quase ascética Palácio do Catete.
Enterrado Vargas, empossados Café Filho
(presidente), Eduardo Gomes (ministro da Aeronáutica) e Juarez Távora (ministro
chefe da Casa Militar), encerraram-se os inquéritos e nem os militares, nem a
imprensa, nem a antiga oposição voltam a falar em corrupção.
Em 1964, retornam os IPMs, os inquéritos
comandados por coronéis, e a caça às bruxas, primeiro indiscriminadamente, em
seguida de forma metódica, com alvo preciso, o ex-presidente Juscelino
Kubitscheck. Mas aí era um regime de exceção, uma ditadura.
Os inimigos do novo regime foram transformados,
uns (pessoas e entidades, como os sindicatos) em subversivos, outros em
corruptos, e porque eram inimigos do regime eram, necessariamente, aos olhos
deste, subversivos ou corruptos. Antes de acusados eram condenados.
Pois a
acusação era a justificativa da condenação prévia, e os acusados eram presos
para que seus crimes fossem apurados, apurados para justificarem a condenação e
a pena, já imputadas.Juscelino era, nos primeiros anos do golpe militar, o único líder civil do regime anterior politicamente sobrevivente.
Jango, Brizola e Arraes amargavam o exílio. Torna-se, assim, JK, o inimigo a
ser abatido. Como não poderia ser acusado de subversivo, foi condenado como
corrupto, pela imprensa e pelos militares, a imprensa repetindo o ditado dos militares,
embora nada tivesse sido ou fosse apurado contra ele.
Condenado, foi chamado a depor duas ou mais vezes
em inquéritos militares (pois a pena decretada era sua desmoralização pública)
até que, ameaçado, temendo maiores humilhações e mesmo temendo por sua
integridade física, optou pelo exílio. Os militares não falaram mais nos
inquéritos abertos e a imprensa o ignorou até ser obrigada a registrar o pranto
nacional em sua trágica morte. A história não se repete.
Mas saltam aos olhos
as semelhanças entre o ódio vítreo que se construiu contra Vargas e JK e este
que a imprensa brasileira. Quase em uníssono, destila, alimenta e propaga contra o ex-presidente Lula, açulando, não mais as Forças Armadas como antes, mas agora agentes policiais sem comando, procuradores sem limites e juiz na presidência de inédita jurisdição nacional.
A história não se repete. Mas o ex-presidente Lula já foi chamado a depor, na Polícia Federal, umas duas ou três vezes, e agora é intimado, com a mulher, a depor em inquérito aberto pelo Ministério Público paulista. Precisa explicar porque desistiu da compra de um tríplex em Guarujá e porque visitava um sítio em Atibaia, e porque incentivou a indústria automobilística quando o País precisava criar empregos.
Condenado sem
sursis como corrupto pela imprensa – como Vargas e JK –, exposto à execração
pública, decaído em seu prestígio, como agora, Lula – e eis o que se pretende –
estará afastado das eleições de 2018, seja como candidato, seja como grande
eleitor.
Fonte: Brasil 247
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